“Política e politicalha não se confundem, não se parecem, não se relacionam com a outra. Antes se negam, se repulsam mutuamente. A política é a higiene dos países moralmente sadios. A politicalha, a malária dos povos de moralidade estragada.”
Advogado, jurista, jornalista, filólogo e diplomata, orador brilhante, abolicionista, deputado, senador e candidato à presidência, além de diversas outras áreas onde atuou com sua mente ágil e desafiadora, deixando sua marca indelével na história do Brasil. Suas maiores qualidades talvez tenham sido a coragem e o bom senso, sua aversão à politicagem, seu elevado senso institucional mesmo não imune a erros, mas sempre com uma honestidade ímpar. Lembrar de Rui Barbosa é destacar a força da cultura e da inteligência, antídotos para grandes males de nosso tempo.
Formação:
Nascido em Salvador, Bahia, em 5 de novembro de 1849, seu pai era médico e político, sua mãe, doceira. De rara inteligência desde pouca idade, aproveitou-se da grande biblioteca de sua família em sua formação básica, o que lhe valeu seguidos elogios nas escolas por onde estudou. Ingressou na Faculdade de Direito do Recife em 1866, com a ajuda do amigo João Moura que o subvencionou numa época de grandes dificuldades familiares. Em 1868 transfere-se para “as arcadas”, a Faculdade de Direito do Largo do São Francisco, em São Paulo.
Afora seu brilhantismo pessoal, uma formação seleta, já que eram, à época, as duas instituições do gênero no país.
Nas arcadas, conhece muitos dos que viriam a ser dos brasileiros mais importantes do seu tempo e de grande importância na história do país, tais como José Bonifácio, Joaquim Nabuco, Luis Gama, Rodrigues Alves e Afonso Pena. Lá, também deu vazão às suas múltiplas qualidades, tais como a poesia, a oratória e o texto primoroso, iniciando carreira também no jornalismo, aprofundando-se no liberalismo que já conhecia de família, pregando a federação, o abolicionismo, a instrução pública, as eleições diretas, universais e livres, os direitos humanos e a magistratura independente, dentre outras tantas causas que se contrapunham ao às tradições de uma sociedade ainda arcaica, predominantemente rural e eivada do vício do escravismo que teimava em persistir, mesmo em extinção pelo mundo afora.
Liberal de formação e convicção, na linha de frente do abolicionismo que era a grande questão política da época a permear praticamente todo o debate político do segundo império. Antes mesmo de formado, em 1869 subiu à tribuna na defesa de um escravo. Graduando-se em 1870, volta à Bahia, onde, em meio a problemas de saúde e às crises financeiras familiares e, inclusive, à morte de seus pais, em 1871 ingressa no escritório de advocacia Souza Dantas e logo depois no jornal de propriedade de Manoel Dantas, o “Diário da Bahia”, onde passou ao periodismo, inclusive para dirigir a publicação.
Abolicionista:
“Nós os abolicionistas, pois, ramo da família liberal, que não derroga à lei de sua fé, mas que, antes de liberais e contra liberais, somos abolicionistas, porque vemos na política um serviço da pátria e um instrumento da humanidade – temos os braços estendidos para a abolição, seja qual for a parcialidade, que no-la ofereça”. Discurso proferido em 1886, por ocasião do velório de José Bonifácio.
Rui Barbosa foi abolicionista desde sempre, havendo registros de sua atividade pela causa desde os primeiros anos na faculdade ainda em Recife, se não desde criança, incentivado pelos pais liberais. Destaco esta, dentre suas muitas causas, porque foi uma luta de vida inteira, dentro de um debate feroz que mobilizou o país e, no segundo império, o dividiu entre emancipacionistas, abolicionistas e escravistas, fazendo cair seguidos gabinetes conservadores e liberais, acabando por ser um dos principais fatores que levariam à Proclamação da República, onde ele também esteve na linha de frente, pois inclusive fez parte do primeiro governo do novo regime.
Já com sua formação familiar, ao transferir-se para as arcadas passou a gravitar em torno de José Bonifácio, acompanhado de outras figuras de destaque na causa: seu amigo da Bahia, Castro Alves, mais Joaquim Nabuco, Rodrigues Alves e Afonso Pena, entre outros, todos homens destacados na história de um Brasil que, na época, começava a discutir com fervor a doutrina liberal, na qual se inseriam o trabalho livre e o fim da servidão. Ajudou a fundar e escreveu em “O Radical Paulistano” jornal de propriedade do escravo liberto Luis Gama, com todo o radicalismo inerente à juventude, que, certo, com o tempo foi contido, não sem manter-se depois na defesa intransigente da causa no “Diário da Bahia” e depois na tribuna da Câmara, no “Jornal do Commércio”e na “Gazeta da Tarde”, onde frequentemente denunciava os sofismas em defesa da escravidão (ser o fim da escravidão “uma questão de tempo”, de “conveniência”, de “gradação”e de “prudência), e ainda como advogado e senador, propondo, discutindo e negociando leis mesmo contra todas as forças contrárias, que não eram poucas e nem destituídas de poder, pelo que inclusive chegou a ser chamado de “comunista”, em sofrendo forte pressão de setores agrícolas da sociedade e até da própria igreja.
Mas sempre na na linha de frente da causa em todo o processo, em todos os atos, em toda a evolução da questão que, de fato, correu em paralelo com a própria Proclamação da República, mesmo ele não sendo totalmente averso à monarquia como se poderia concluir.
A Lei Áurea teve como efeito colateral uma discussão de ressarcimento aos escravocratas pela perda de suas “propriedades”. Já a Lei do Ventre Livre previa que os senhores de escravos seriam indenizados pelas crianças que ficariam sob sua tutela até os 8 anos, depois livres. Mais que isso, várias legislações que trataram do assunto evocavam o “direito de propriedade” que foi exaustivamente discutido em termos de “confisco”, até porque isso inibia o Estado, que teria, em tese, a obrigação de indenizar.
Jurista brilhante, sabia da possibilidade dos tribunais determinarem uma indenização de grande monta pelo fim da escravidão, que colocaria em risco não só a República, mas o próprio país.
MARY DEL PRIORE explica os números: “O impacto da abolição foi devastador na relação entre o governo imperial e uma legião de proprietários rurais, pois, na época em que foi sancionada, a indenização era impossível: os 700 mil escravos existentes (sendo quase 500 mil deles localizados em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) valiam, no mínimo, 210 milhões de contos de réis, enquanto o orçamento geral do Império era de 165 milhões de contos de réis.” ( Uma Breve História do Brasil, Editora Planeta, 2010, p. 210)
Assim, em um ato até hoje polêmico, determinou a destruição da documentação alfandegária e fiscal sobre os escravos, inicialmente sob a desculpa de eliminar do país os vestígios da escravatura, mas cuja finalidade era mesmo a de impedir que se discutissem judicialmente indenizações colossais decorrentes de um ato do Estado, baseadas em farta fundamentação legal antecedente com grande risco econômico e institucional. EDUARDO BUENO explica com propriedade: “O governo brasileiro não pagou indenização alguma aos senhores de escravos (“Indenização monstruosa, já que uma grande parte deles eram africanos legalmente escravizados, pois haviam aportado ao Brasil depois da Lei Feijó, de 7 de novembro de 1831”, como disse, em discurso na Câmara, Joaquim Nabuco). Porém, o preço para que tal indenização absurda fosse paga foi enorme, Afinal, teria sido justamente para evitar que qualquer petição pudesse ser feita pelos escravocratas, que Rui Barbosa, ministro das Finanças do primeiro governo republicano, assinou o despacho de 14 de dezembro de 1890, determinando que todos os livros e documentos referentes à escravidão existentes no Ministério das Finanças fossem recolhidos e queimados na sala das caldeiras da Alfândega do Rio de Janeiro.” (Brasil: Uma História, Editra Leya, 2010, p. 20)
Desta forma, o que muitos disseram ser mácula da sua biografia, foi em verdade um movimento salvacionista do regime e da própria abolição, pela qual, inclusive, continuou lutando até o fim de sua vida.
Rui logo fica decepcionado com os rumos do regime que ajudara a construir. A República, debatendo-se entre politicagem e oligarquia, migrava para uma ditadura e não adotava o ideário liberal de igualdade que exigia reformas sociais que, inclusive, impedissem que os libertos fossem abandonados à própria sorte, o que efetivamente ocorreu, causando a miséria que materializou-se com a aparição de favelas, cortiços e condições subumanas generalizadas nas grandes cidades.
Ficou horrorizado com a falta de sensibilidade dos governantes em não tratarem da questão com a importância que ela merecia. REJANE M. MOREIRA DE A. MAGALHÃES bem cita que “ao longo de sua vida, jamais deixou de se preocupar com o problema do negro em sua total abrangência, desde a simples libertação , a alforria ampla e ilimitada, até sua inserção na sociedade branca”. (As Idéias Abolicionistas de Rui – Fundação Casa de Rui Barbosa – www.casaruibarbosa.gov.br). Lutou até o fim de seus dias pelo ideal libertário e justo com que sempre sonhou.
Republicano na monarquia, liberal convicto:
“A liberdade não é um luxo dos tempos de bonança; é o maior elemento da estabilidade”.
A alternância frenética de governos conservadores e liberais no segundo império tornava difícil a implementação de programas complexos que pudessem alterar significativamente a vida nacional, especialmente se feriam interesses já estabelecidos, o que explica a luta de décadas pela abolição da escravatura e mesmo o pouco progresso da reforma do ensino, considerada por demais avançada para o país à época.
Rui era liberal, mas isso não fazia dele um anti-monarquista. Apesar de em certos momentos identificar na coroa um dos motivos do atraso econômico, social e político do país, sempre guardou pelo monarca o respeito de um jurista dedicado à Lei que fazia do imperador um dos poderes do Estado brasileiro.
A própria República acabou proclamada dentro desse contexto de caos político, porque o problema não era exatamente a monarquia, já que a proclamação foi o resultado do acúmulo de questões diversas, alimentadas justamente pela alternância constante de rumos que impedia o avanço do país, que acirrava os ânimos e que elevava as mentes brilhantes como a de Rui, de Benjamin Constant e Joaquim Nabuco, entre muitos outros.
Eleito deputado provincial da Bahia em 1877, chegou à Assembléia Nacional em 1881, sempre defendendo de modo ferrenho os diversos ideais liberais, que aprendera com seu pai, também político, e depois nas arcadas, estudando Direito.
Relatou a chamada “Reforma Geral do Ensino”de 1883, um projeto tido por ele mesmo como uma visão civilizadora do país, cuja intenção era de modernizar a formação das crianças, e fazer da “instrução pública” uma manifestação da liberdade humana sem a intervenção nem do Estado, nem da religião na sala de aula. Um trabalho minucioso, que previa a obrigatoriedade de formação de todos os cidadãos e normas até para delimitar condições físicas do ensino, a salubridade das escolas, a metodologia e os limites da atuação dos docentes. Graças à isto, chegou inclusive a compor gabinetes liberais, virando um ministro de Sua Majestade.
Mas sua visão era ampla, não limitada à questão educacional. Tinha convicção que a abolição da escravatura aconteceria cedo ou tarde, e que no centro-sul do país, iniciara-se um processo de importação de imigrantes europeus que certamente trariam não apenas mão-de-obra para o campo, mas também para industrializar a nação.
Veio a abolição e a República acabou proclamada também por diversos fatores, interesses e ideias, bem como das mais diversas correntes políticas, incluindo o liberalismo democrático e federalista que Rui tão bem representava, em contraposição à visão de Benjamin Constant, que chegara a pregar uma ditadura republicana e centralista, mais próxima do positivismo de Augusto Comte.
Toda essa diversidade de opiniões também implicou enormes dissensões que não tardaram a manifestar-se tão logo instalado o governo provisório, que, naquele primeiro momento, desorganizaram ainda mais o Estado caótico do final do Império.
Na República – do entusiasmo à decepção:
Rui foi o primeiro ministro das finanças da República, o que por si só já denota sua importância no processo da proclamação. Mas também foi um dos primeiros líderes do movimento a decepcionar-se com os pendores ditatoriais tanto de Deodoro quanto de Floriano Peixoto, ou mesmo de outros tantos próceres do movimento que acabou com a monarquia, muitos engajados numa visão excessivamente científica do Positivismo de Augusto Comte, que encarava o governo como uma ciência exata, cujos problemas se resolviam apenas com conceitos pré-definidos, o que não funcionava em um regime que era o resultado tanto de ações civis quanto militares, cujas visões distintas e muitas vezes antagônicas não se resolviam por fórmulas acadêmicas.
Via de regra, os civis, como Rui, eram federalistas, liberais e ferrenhamente democráticos, enquanto os militares eram absolutistas e centralizadores, aceitando a ideia de ditadura republicana.
A primeira constituição da república teve a marca de Rui e há quem diga que foi redigida numa reunião em sua casa. Era democrática, federalista e liberal, e atendia às necessidades legais já constatadas nas reformas do governo provisório, mas o primeiro presidente eleito foi Deodoro, um militar com visão bem diferente e especialmente pressionado e impopular pelo acúmulo de problemas que vinham desde o império, agravados pelas dissensões do novo regime.
Como ministro da fazenda, em um primeiro momento, Rui defendeu austeridade“...Cortemos energicamente nas despesas. Eliminemos as repartições inúteis. Estreitemos o âmbito ao funcionalismo, reduzindo o pessoal e remunerando-lhe melhor o serviço. Moralizemos a administração, norteando escrupulosamente o provimento de cargos do Estado pela competência, pelo merecimento, pela capacidade...” (Revista VEJA - Edição Especial sobre a República - Parte integrante da edição nº 37, ano 21, Editora Abril, 1989 – extratos de declarações de época).
Mas o novo regime queria acelerar o crescimento econômico e a industrialização do país dentro de uma visão de copiar a Europa na economia, nos costumes e até na arquitetura, e isso tinha um custo. E assim, talvez por entusiasmo com o nova ordem, talvez por por sucumbir às enormes pressões políticas de uma situação que agregara ainda mais agentes à uma equação já muito complicada da economia do país, sucumbiu ao populismo e aderiu ao “encilhamento”.
O termo “encilhamento” significa colocar os cavalos em posições de largada, ou seja, preparar o país para a corrida, o que já denota populismo em uma conjuntura de dificuldades em levantar recursos para a tarefa, que, enfim, era do ministro da fazenda: “Rui Barbosa assumiu este posto com uma missão ingrata: promover o desenvolvimento industrial do Brasil no final do seculo XIX. Para isso, tinha de lidar com algumas barreiras que o cenário lhe oferecia, como a completa dependência brasileira do capital externo e um sistema financeiro desafado em relação às necessidades de liquidez da economia”.(https://www.infomoney.com.br/mercados/noticia/1689869/personagens-rui-barbosa-controverso-ministro-fazenda-encilhamento )
Então, ampliando a reforma bancária de 1888, em 1890 a República autorizou a emissão de títulos para a cobertura de emissão de moeda sem lastro em ouro, mantendo uma estrutura de empréstimos sem juros para bancos que, por sua vez, deveriam emprestar com juros subsidiados, o que fizeram sem maiores critérios, até porque iniciou-se uma onda especulativa na fundação desenfreada de novas instituições financeiras e negócios baseados exclusivamente no crédito governamental.
Se é verdade que no primeiro momento gerou crescimento econômico, não demorou causar especulação, inflação e recessão. Bancos e empresas foram fundados tão rápido quanto desapareceram, não honrando os empréstimos, pressionando não apenas as instituições saudáveis quanto o próprio tesouro, com evidentes reflexos políticos.
Quando a dissensão política juntou-se à crise econômica, Deodoro resolveu ignorar a consituição fechando o Congresso em 1891, quando Rui se demite do ministério. Em 1892, abandona a bancada no senado e lança um manifesto: “Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação Eu ouso dizer que este é o programa da república”.
À estes fatos, segue-se um golpe que alça Floriano Peixoto à presidência em 1892, e depois, eclodem a Revolta da Armada na capital e a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul, já que o novo presidente não convocou eleições como mandava a carta magna, além de ser centralista e absolutista, apesar de seus méritos em consolidar o regime.
Floriano instala uma ditadura e Rui, que adquirira o “Jornal do Brasil”, à denuncia fortemente, demonstrando também o desapreço pelo rumo que o país tomara em direção da chamada “Belle Èpoque”.
Em 1893 eclode a “Revolta da Armada”, uma sublevação da marinha, que ainda era fortemente monarquista, quase em paralelo com a Revolução Federalista que eclodiu no Rio Grande do Sul. O conjunto de ambas virou um conflito nacional que punha à prova o regime republicano e a presidência de Floriano.
Rui adere à revolta por meio de seu jornal, inclusive defendendo no STF o habeas corpus a aprisionados no conflito, pelo que acabou refugiado na embaixada do Chile e depois, exílado na Argentina, com o fechamento do seu periódico. Migra para a Inglaterra onde fica até 1895, já no primeiro governo civil da república, de Prudente de Morais, quando reassume sua vaga no senado e passa a defender a anistia em favor de todos os punidos e perseguidos por Floriano.
Continuou sua luta ingrata contra uma república elitista, que tudo decidia aos conchavos de oligarquias estaduais, sem eleições verdadeiramente democráticas, sem idéias, sem partidos verdadeiros e sem programas de governo, onde o presidente em exercício praticamente escolhia seu sucessor sem maiores contestações.
E além dos problemas políticos, o país também enveredou por uma uma onda europeísta, uma tentativa de copiar o velho continente com pendores racistas que negavam direitos aos escravos libertos, implicando contra a miscigenação e mesmo contra as tradições culturais, e cujo traço mais visível foi o “bota abaixo”, a demolição de cortiços e construções antigas, mas centrais, de grandes cidades, para a construção de largas avenidas em estilo europeu, o que foi o símbolo da “Belle Èpoque”, mas sem uma política habitacional compensatória, que levou as populações pobres (e eminentemente formadas por ex-escravos) para os morros, as terras baratas afastadas dos centros urbanos, que viraram favelas. Para Rui, que sempre pregara políticas sociais incursivas para os libertos, era apenas mais um motivo de decepção com o regime que ele ajudara a fundar e que constatava confuso, incapaz de superar as crises entre as várias quarteladas e revoluções que eclodiam pelo país.
Eis que Afonso Pena morre antes de impor seu sucessor, que seria David Campista, contra quem Rui já se insurgira extremecendo a amizade com o então presidente. Mas Rui, já o “Água de Haia”, o brasileiro mais respeitado do seu tempo, cansado dos conchavos que vinham desde o império, resolve insurgir-se à escolha do Marechal Hermes da Fonseca em detrimento à do Barão do Rio Branco.
Hermes, apoiado pelas forças armadas, remetia aos terríveis anos de Floriano, pelo que Rui se candidata, ou, talvez, se “anti-candidata”, pois já estava nas ruas a Campanha Civilista, da qual ele assumiu a liderança, denunciando os vícios de origem (não os de caráter) do candidato do regime, que se queria presidente pelos mesmos métodos de escolha de seus antecessores.
Diz HÉLIO SILVA que “A Campanha Civilista é a primeira luta democrática da República. Tão grande, em sua importância e repercussão que até hoje não pôde sequer ser igualada” (História da República Brasileira – Luta Pela Democracia – 1911 a 1914. Ed. Istoé/Três, 1998, p. 39).
Rui foi o primeiro verdadeiro candidato à presidência da história do país. Ele não teria seu nome levado à chancela, nem era uma oposição simbólica como ocorrera até então. Foi à praça pública pedir votos e disputá-los à boca de urna mesmo sabendo não ter chances de vitória, mas defendendo os valores republicanos e liberais pelos quais lutara a vida inteira. “Eu sou dos sacrifícios. Se fosse para a vitória, não me convidavam, nem eu aceitaria; mas como é para a derrota, aceito. A ideia não morrerá pelo meu egoísmo. Perderemos, mas o princípio da resistência civil se salvará...”
E denunciou em praça pública todos os vícios que vinham desde o império, e os vícios que se criaram com a República, corpo a corpo, nos jornais, nas reuniões nos teatros e nos comícios para os quais acorreram multidões.
As eleições nacionais ocorreram do mesmo modo que as anteriores, fraudadas, praticamente homologadas por quem lançou a candidatura vencedora. Mas pela primeira vez na história da república havia uma oposição articulada. Os dois mais importantes estados divergiram do conjunto das oligarquias e havia um líder que trabalhou exaustivamente na apuração e denunciou as fraudes, exaurindo os recursos processuais possíveis, indo às últimas consequências com coragem ímpar.
Eleito Hermes da Fonseca, ao montar seu ministério chegou inclusive a convidar Rui, sem sucesso, mas confessando a enorme admiração por aquele que era considerado um dos maiores brasileiros da época, que fundou e manteve a primeira oposição organizada na história da República a partir da coragem de enfrentar o candidato do regime e depois contestar sua eleição. E mais que isso, a eleição de Hermes alçou ao máximo poder uma das figuras mais proeminentes da República Velha, o senador gaúcho Pinheiro Machado, que encontrou em Rui seu contraponto, um opositor firme, popular, de retórica poderosa e respeitabilidade, única pessoa em todo o país e em toda a classe política que era capaz e tinha coragem de enfrentar o então todo-poderoso senador, presidente da “Comissão de Verificação de Poderes” e articulador da política de salvações nacionais que marcou aquele governo com intervenções nos estados.
Rui foi quatro vezes candidato à presidência, desistindo de sua campanha contra Venceslau Brás (e ainda recebendo 47 mil votos). Em 1921 renuncia ao seu último mandato como senador.
Na República, nunca esmoreceu e lutou bravamente pelos ideais liberais e democráticos, resistindo à ideia de alojar-se confortavelmente no regime que ajudara a criar e que o abraçaria sem mágoas como aconteceu com outros tantos próceres do fim da monarquia. Foi sua maior obra e pior decepção, e seu discurso no senado, em 17/12/1914 revela o estado de espírito da luta inglória que abraçou por toda uma vida:
"De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto... Essa foi a obra da república nos últimos anos. No outro regime o homem que tinha certa nódoa em sua vida era um homem perdido para sempre. As carreiras políticas lhe estavam fechadas. Havia uma sentinela vigilante, de cuja severidade todos temiam a que, acesa no alto, guardava a redondeza como um farol que não se apaga... Em proveito da honra... da justiça... E da moralidade gerais."
O “Águia de Haia”: diplomata, advogado, jurista, filólogo...
As ditas “conferências de paz” de Haia, foram multilaterais e tentaram organizar a ordem internacional de pós-guerras, refletindo uma preocupação da sociedade civil de inúmeros países com a violência cada vez maior dos conflitos, cujas armas eram cada vez mais destrutivas. Foram uma tentativa de “humanizar” a guerra, criar regras mínimas de proteção às populações civis.
Foram uma experiência de “diplomacia aberta”, ou seja, discussões públicas que se contrapunham à sigilosa diplomacia tradicional por meio de fóruns de discussão em um país neutro, a Holanda, com cada país/delegação tendo o mesmo peso nas votações, sem a hegemonia das grandes potências econômicas e militares.
A primeira ocorreu em 1899 e a segunda, mais abrangente, em 1907, convocada pelos EUA após os dois severos conflitos, a Guerra dos Boeres (1899 – 1902) e a Guerra Russo-Japonesa (1904 – 1905), numa busca em dar “mais juridicidade às relações povo a povo” e “na medida do possível substituir ao arbítrio o direito, à violência a razão, a intolerância à justiça” (LAFER, CELSO – https://cpdoc.fgv.br), de modo que o Brasil não poderia ter sido melhor representado, se não por Rui, um poliglota cujos valores liberais, a inteligência e a oratória perfeita o fizeram brilhar, sendo reconhecido internacionalmente, tanto pelos diplomatas, seus oponentes nos debates, quanto pela opinião pública.
Rui contestou a diplomacia baseada na força e defendeu a igualdade entre os Estados nacionais com a democratização das relações entre os países criticando a classificação destes por sua força militar, o que feria as práticas de época, quando as grandes potências impunham suas vontades em todos os foros de negociação. Também trabalhou pela criação de uma corte de justiça arbitral, que foi o embrião da Sociedade das Nações, que por sua vez inspirou a criação da ONU. Debateu em alto nível com os representantes de todas as nações e em especial das grandes potências, peticiou pessoalmente sem auxílio de assessores, discursou em diversos idiomas, negociou medidas diversas e inclusive, discutiu o fim da aquisição territorial pela força mesmo decorrente de guerra sem mediação internacional, uma medida tão avançada e ambiciosa, que só teve tratamento legal mais de 40 anos depois, após o fim da Segunda Guerra Mundial e mesmo assim, após definidas as perdas/ganhos de territórios ao fim dela. Lutou pela democracia e pelos valores liberais no exterior com a mesma perspicácia e inteligência com que lutava por eles dentro do Brasil.
Recebeu o apelido de “Águia de Haia”, voltou em triunfo para o Brasil, onde, tratado como celebridade internacional, recebeu a mais alta comenda do país das mãos do presidente, seu amigo de arcadas, Afonso Pena. Chegou a ser indicado juiz da Corte Internacional de Haia e depois delegado brasileiro na importantíssima Conferência de Versalhes de 1916.
A coragem de Rui Barbosa refletia em sua advocacia. Sua inteligencia e seus valores liberais, idem, e sua atitude perante a profissão até hoje serve de exemplo para todos os juristas, o que foi transformado em “O Dever do Advogado”, que escreveu ao aceitar a defesa criminal de um adversário político e onde afirma o dever do causídico em prestar assistência jurídica, em acreditar nas instituições sem submeter-se aos arbítrios dos homens.
“A pior ditadura é a ditadura do Poder Judiciário. Contra ela, não há a quem recorrer.”
“ Advogado, afeito a não ver na minha banca o balcão do mercenário, considero-me obrigado a honrar a minha profissão como um órgão subsidiário da justiça, como um instrumento espontâneo das grandes reivindicações do direito, quando os atentados contra ele ferirem diretamente, através do indivíduo, os interesses gerais da coletividade.“
Orador afamado e escritor profícuo de mais de 100 volumes de textos jornalísticos, ensaios literários, poesias, pareceres jurídicos, petições e discursos, também foi um fervoroso defensor da língua portuguesa e ajudou a fundar a Academia Brasileira de Letras, presidindo-a em substituição a Machado de Assis.
Conclusão:
O Brasil perde Rui Barbosa em 1o. de março de 1923, quando um edema pulmonar acaba com a vida marcada da luta por ideais, a palavra franca da oratória poderosa, o estudo minucioso de todas as questões a elevar os debates, mas principalmente pela afirmação diária dos direitos mais fundamentais do homem, os valores liberais de um abolicionista convicto, fervoroso democrata a defender a sociedade civil sem ceder à tentação dos arranjos confortáveis do poder, tendo transitado a vida inteira nas mais altas rodas tanto do Império quanto da República.
Sua enorme biblioteca pessoal transformou-se na Fundação Casa de Rui Barbosa. A revista Época o elegeu “O Maior Brasileiro da História” e o jornal A Tarde, “O Maior Baiano de Todos os Tempos”. Ainda foi homenageado no cinema, e na numismática teve sua efígie nas notas de Cr$ 10 mil e Cz$ 10,00.
Claro que, neste texto, não tenho a pretensão de abordar toda vida do grande brasileiro que veio da Bahia, até porque isso já foi feito por diversos outros autores mais competentes e estudiosos.
A ideia desta matéria é homenagear a coragem e a honestidade de um político que, como qualquer pessoa, também avaliou mal certas situações e errou, mas que ousou sonhar com um país democrático e progressista, sem conchavos e sem cessões às tentações do poder, preferindo a oposição sincera à situação acomodada, a renúncia ao poder antes de manchar suas mãos com a injustiça flagrante.
Sempre digo que grandes homens são o farol da humanidade e Rui não foi diferente. Em Haia ele mostrou para o mundo o que se sabia no Brasil: ele era uma luz que guiava os cidadãos que lutavam por justiça e democracia, uma luz que, se olharmos com atenção, ainda é capaz de nos guiar quase 100 anos depois de apagada, nestes tempos de trevas e confusão em que vivemos.
Curitiba, 29 de agosto de 2019.
Bibliografia:
BUENO, Eduardo – Brasil: Uma História. Editora Leya, 2010.
DEL PRIORE, Mary – Uma Breve História do Brasil. Editora Planeta, 2010.
SCHWARCZ, Lilia Moritz – As Barbas do Imperador, Companhia das Letras, 1998.
SILVA, Hélio – História da República Brasileira – Nasce a República 1888-1894, Editora Três, 1998.
SILVA, Hélio – História da República Brasileira – Luta pela Democracua 1911-1914, Editora Três, 1998.
Revistas:
Revista VEJA - Edição Especial sobre a República - Parte integrante da edição nº 37, ano 21, Editora Abril, 1989 – extratos de declarações de época
Na Internet:
Wikipedia – verbete RUY BARBOSA.
LAFER, CELSO – Fundação Getúlio Vargas – Centro de Documentação – https://cpdoc.fgv.br.
MAGALHÃES, Rejane M. Moreira de A. - As Idéias Abolicionistas de Rui – Fundação Casa de Rui Barnosa – www.casaruibarbosa.gov.br.