As manifestações que estamos vendo pelo Brasil afora tem um clima
de “gota d'agua”, o brasileiro cansou de muitas coisas e passou a
externar isso abertamente, mesmo que o faça sem organização e
mesmo sem justificativa direta.
Desde o “fora Collor”, quando se pensou que o país embarcara
numa onda de moralidade, o que se viu no Brasil foi uma política dos
fins justificando os meios. Para combater a inflação e a
desorganização do Estado os impostos foram subindo e arroxando as
pessoas, para justificar a continuidade do combate, criou-se a regra
da reeleição, para manter a inflação baixa, se alegou ter
necessidade de apoio parlamentar mesmo que ideologicamente não
compatível. Criou-se uma salada
mista, onde “aliado” é todo mundo que quiser ser governo e não
quem tiver afinidade ou ideias, a ponto de, em 2002, criar-se o
conceito de “ministério com porteira fechada” para indicar o
apoio político comprado junto a antigos inimigos políticos mediante
a entrega de um conjunto completo de cargos e estruturas federais
para um só partido aderente.
E na mesma toada, os políticos que apoiavam os governos passaram a
achar que lhes era de direito abusar das mordomias, dos aumentos
frequentes de salários, de estipêndios, de compensações por
despesas que nem precisariam ter. E as coisas foram piorando, quando
o país descobriu que o arroxo de década e meia no combate à
inflação legara uma situação fiscal que possibilitava algum
crescimento econômico, passou-se a achar que o Estado brasileiro é
rico, e então criou-se a ilusão do “país potência”, que sob
as rédeas de um deus barbudo ninguém mais seguraria, e que isso
autorizava a criação de muitos ministérios, muitos cargos sem
concurso para todo tipo de desocupado, muita arrogância e muita
opulência.
Arrogância porque se criou a sensação geral de que a classe
política é intocável. Deputado cassado por corrupção virou
prefeito tempos depois, deputado condenado por corrupção continua
elegível, deputado que matou dois jovens a sangue frio dirigindo um
veículo a 190 km/h simplesmente não é julgado e não paga pelos
seus crimes aguardando a prescrição da pena, deputados e políticos
envolvidos em um caso descarado de desvio de recursos publicos, uma
vez condenados nada menos que pelo STF, simplesmente não se recolhem
à prisão e alguns deles voltam em triunfo à Câmara dos Deputados!
E dentro desse contexto do “tudo possível”, eis que o Erário
passou a ser considerado infinito, o dinheiro público foi liberado
para tudo, então os políticos aceitaram a inversão completa de
qualquer prioridade nacional ao eleger a organização da Copa do
Mundo e da Olimpíada como algo acima de qualquer pleito popular, não
importando quanto seria gasto, nem se seria bem gasto, muito menos se
teria retorno. Nada mais importava senão ter estádios perfeitos e
mostrar ao mundo um Brasil grande, opulento e exibido, mesmo que a
maioria de sua população continue vivendo em favelas, sem
saneamento básico, sem educação fundamental, sem um sistema de
saúde minimamente eficiente, suportando a burocracia mais insana do
planeta, sem previdência, pagando os impostos mais caros do mundo
sem necessidade, já que eles foram alçados a este patamar para
combater a inflação e uma vez ela controlada deveriam ter voltado
aos índices históricos.
Sintomático então, que no momento exato em que a classe política
começou a exibir para o mundo e para a FIFA os troféus da sua
irresponsabilidade o povo tenha cansado, a represa da insatisfação
popular se rompeu e as águas jorraram ora plácidas, ora violentas.
O estopim foram R$ 0,20, mas a banana de dinamite que foi estourada
engloba os impostos altos que não são revertidos em uma vida
minimamente decente, o descaso com direitos fundamentais mas
principalmente, a revolta contra os políticos que durante duas
décadas afrontaram as pessoas vivendo como nababos, empregando
parentes, amantes e correligionários, dando risada da Justiça e se
fartando em acordos espúrios com a sensação de que, se desse algo
errado seria necessário apenas colocar o filho e/ou a esposa na
chapa das eleições que tudo continuaria igual.
Eu sou um dos que estava decepcionado com a mansidão do povo
brasileiro, que vinha aceitando tudo de cabeça baixa, em troca das
esmolas do bolsa-família que nada mais é que uma contra-prestação
precária dos impostos altíssimos que todos pagam, mas nem todos
sabem que pagam. Pensava que tínhamos chegado a uma situação sem
retorno, em que o sangue de barata havia aderido ao DNA nacional.
Ainda bem que eu estava errado, o brasileiro está demonstrando não
ter sangue de barata e quebrou o dique! E agora que quebrou o dique
ninguém sabe até quando as águas vão rolar...