Eu ainda lembro daquele dia em outubro de 1988.
Ulisses Guimarães levantou o livro sobre a cabeça e declarou promulgada a "Constituição cidadã", o "documento da liberdade".
E a felicidade se espalhou pelo Brasil. Na faculdade de direito da UFPR, alguns colegas meus organizaram uma manifestação de contentamento e ato contínuo, foram gravemente criticados pelo meu professor de processo civil, porque cantaram o hino nacional em ritmo de samba.
Mal sabia meu professor que a "constituição cidadã" faria do Brasil um país de amorais que falam muito de seus direitos, mas omitem-se quando o assunto são suas obrigações. A indignação dele contra o hino em ritmo de samba virou piada, o hino virou piada, os valores morais viraram piada na boca dos espertalhões que se utilizam dos termos generosos e utópicos do documento para não serem atingidos por Lei alguma.
Havia esperança naquele livro que o PT se recusara a assinar e que, diz a lenda, o então presidente José Sarney declarou que tornaria o país ingovernável, como efetivamente tornou. O povo brasileiro sonhava com uma nova era de justiça social, ainda cansado dos 20 anos de regime militar, onde criou-se muita riqueza que não foi distribuída.
Mal sabia o povão que este monstrengo institucional agigantaria o Estado a níveis jamais concebidos mesmo num país extremamente paternalista como o Brasil e faria com que a crise econômica e social se arrastasse, em maior ou menor grau, até hoje.
Funcionários celetistas passaram a ser estatutários com todas as regalias que então existiam, muitas delas extintas nos anos seguintes para os poucos novos servidores, à guisa da falência completa da administração pública cada vez mais deficitária. Isso causou a cessação de novos concursos e levou ao fim de muitas atividades de fiscalização e controle, que tiveram efeitos desastrosos em áreas sensíveis como o atendimento ao público, a saúde, a educação, a fiscalização tributária e ambiental e mesmo a administração do patrimônio dos entes federativos.
A Constituição paralisou o Judiciário e tornou o controle do Estado impossível, a corrupção grassou. De problema virou praga, de praga epidemia, de epidemia, virou valor aceito por quase todos os políticos, como se parte de um código amoral de manutenção do poder.
A previdência social quebrou, porque naquele momento, milhares de funcionários celetistas passaram a ter direitos como o de se aposentar com salário maior que na ativa e isso foi coberto pelo Tesouro Nacional por meio do INSS, que não poderia furtar-se a aceitar os termos constitucionais.
A dadivosa constituição autorizou a criação de 4 novos estados e milhares de municípios a pagar salários generosos para governadores, deputados, desembargadores, prefeitos, vereadores e secretários, em locais onde não havia mínima viabilidade econômica,alimentados pela miséria extrema e pela corrupção dos agentes políticos de raia miúda.
A carga tributária saltou de pouco menos de 20% para quase 40%. Toda a formalidade na criação da Constituição não protegeu o contribuinte dos abusos fiscais do Estado e mesmo da criação de novos impostos, que desde então foram aumentados todos os anos de uma forma ou de outra. Deixou-se criar uma excrescência chamada "contribuição social" utilizada para absolutamente tudo, menos para desenvolver a sociedade.
A cláusula de emendamento constitucional ficou frouxa pela Carta ser parlamentarista na essência e presidencialista na prática. Fez com que o Executivo adquirisse super poderes a tal ponto que alterou o texto sempre que quis, e sem nenhuma resistência institucional ou política, porque em qualquer dificuldade, emite-se medida provisória, distribui-se verba para corruptos e consegue-se a alteração que se quer.
Mesmos super-poderes que geraram crises cíclicas, que desnudaram a incapacidade institucional do Legislativo e do Judiciário, principalmente quando o Executivo resolveu impor novos tributos na recusa patente e recorrente de reformar o Estado desde então falido, com custos eleitorais que não se quiseram assumir.
Enfim, se fosse possível medir em reais a quantidade de prejuízos causados pela Constituição de 1988, certamente chegariamos à conclusão que ela nos custou anos e anos do PIB, atrasou o desenvolvimento econômico e criou uma classe de pessoas, a dos políticos, que encontra-se acima da Lei e da ordem, à salvo de qualquer punição por seus atos errôneos. Hoje, no Brasil, até o mais analfabeto vereador corrupto de município de grotão tem uma tamanha proteção constitucional, que pode agir livremente na atividade de roubar o Estado.
É claro que boas coisas decorreram da Constituição de 1988. O Direito do Consumidor, e o enorme desenvolvimento dos direitos civis, como a igualdade entre sexos, a luta contra o racismo e o preconceito de natureza sexual, a legislação ambiental moderna (embora não praticada), a preocupação com políticas sociais (embora muitas demagógicas) e o obsessivo princípio democrático que ela encerra.
Mas foi redigida de modo irresponsável e atrasou o país.
PS:
Antes que alguém imagine que eu defendo uma nova constituinte, já aviso que não, que não defendo e que pretendo que essa Constituição fique aí como está, até porque, já não é a mesma de 1988. Mexer nela seria agravar o que já é grave...
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