12 de fev. de 2019

PUNIR O FLAMENGO É DEIXAR IMPUNE O VERDADEIRO CULPADO, NA VALE TAMBÉM.



O sistema jurídico brasileiro é fundado na pessoa, ele julga os atos humanos, não os fatos que afetam as universalidades como as empresas, os espólios e a administração pública. 

É recentíssima, em termos jurídicos, a discussão acerca das natureza de uma instituição. Quando entrei na faculdade, em 1989, ainda repercutia um livro do brilhante e saudoso professor José Lamartine Corrêa de Oliveira, "A Dupla Crise da Pessoa Jurídica", em que se discute justamente isto: até onde a pessoa jurídica é sujeito de direitos e obrigações? 

De qualquer modo, o importante para o leitor é saber que o sistema jurídico brasileiro só pune a pessoa jurídica do ponto de vista pecuniário. A pessoa jurídica é multada e condenada a pagar ou fazer, mas não sofre com sentença penal, porque por óbvio, os seus atos criminosos são praticados por pessoas físicas.

Os mesmos contâineres da tragédia no Ninho do Urubu do grande Flamengo são usados no CT do pequeno Coritiba para hotelaria dos jogadores profissionais. Talvez o projeto seja mais bem executado, provavelmente se tomaram cuidados adicionais, mas em essência, é o mesmo tipo construtivo. 

Um pequeno minerador também pode causar desastres ambientais. Uma pequena empresa também pode causar mortes no mau gerenciamento de suas atividades. Não é implausível, por exemplo, que um acidente numa pedreira possa gerar uma explosão gigantesca ou um derrame de material tóxico em um rio, com matança de peixes e de vegetação.

Essas tragédias praticamente comezinhas que acontecem no Brasil sempre são seguidas de discussões radicais: a Vale não pode ser fechada porque gera 70 mil empregos, o Flamengo não pode ser punido porque tem 30 milhões de torcedores, a Mineração da Anta precisa ser fechada porque dois de seus 10 funcionários morreram, o Coritiba Foot Ball Club tem de ser extinto porque seus torcedores causaram o caos na cidade e uma pessoa morreu a 15 quilômetros do estádio em decorrência do tumulto.

Notaram que o debate é contraditório?

Notaram que pau que bate em Chico nem sempre vai ralar Francisco?

Uma das piores características brasileiras é maniqueísmo que se usa para proteger quem erra. De acordo com o agente agressor, temos uma forma de agir. Se é o grande Flamengo, dizemos que o clube não pode ser punido, se é o pequeno Coritiba, fazemos campanha para que ele desapareça e sirva de lição. Se é o diretor da Vale, ele não tem como saber de todos os atos de seus subordinados, se é da Mineração da Anta, é um capitalista ganancioso sedento por lucro fácil.

E neste eterno debate, no fim das contas, os verdadeiros culpados ficam livres, não são afetados porque se forma uma confusão tamanha, que em certo momento não se sabe mais distinguir a pessoa da instituição, e isso vale para empresas, associações e até mesmo para o Estado, os órgãos da administração pública.

Já disse esses dias, pouco me importa se é na gigantesca Vale ou na micro Mineração da Anta, se é no pequeno Coritiba ou no gigante Flamengo, o que eu quero mesmo é ver gente em cana, presa, cumprindo decisão condenatória.

Porque quando acumulamos discussões sobre a responsabilidade de instituições, esquecemos que os atos delas são praticados por pessoas. 

Foram os diretores da Vale que não souberam tratar da segurança da barragem de Brumadinho, foram os da Samarco que não souberam tratar de Mariana, foram os diretores do Flamengo que mandaram os garotos se alojarem nos contâineres, foram os agentes públicos que multaram o clube 30 vezes e não interditaram o local com lacre, foram os fiscais da Agência Nacional de Mineração que não foram conferir o estado real das barragens de Mariana e Brumadinho.

Mas nenhum diretor do Coritiba foi preso por conta daquele incidente em 2009, como nenhum diretor da Samarco, como não foi sequer ouvido o governador do Paraná que negou policiamento adicional para aquele jogo fatídico da confusão do clube paranaense, como ninguém do então Departamento Nacional da Produção Mineral foi punido por omitir-se na fiscalização da barragem que veio a romper em Mariana.

E parece que agora, encaminha-se tudo para a mesma direção. Discute-se a responsabilidade das grandes instituições, Vale e Flamengo, mas não se fala na punição direta de suas diretorias ou ex-diretorias. Engenheiros de uma prestadora de serviço pegam prisão provisória, mas nada é feito contra a diretoria de uma empresa recorrente em problemas ambientais. Não se pune o administrador público omisso na sua obrigação de fazer cumprir a Lei, porque supostamente não havia pessoal suficiente, ou, ainda, não era clara a competência funcional em tomar atos acautelatórios.

Como a instituição só pode ser punida com multa ou com custo de praticar um ato, esta se paga, ou entra em dívida ativa, ou se discute ad aeternum em algum tribunal, mas os verdadeiros criminosos ficam livres, aproveitam o escudo eficiente da instituição que já deixou muito criminoso livre, leve e solto, gozando da vida que roubou outras vidas.


7 de fev. de 2019

AS TRAGÉDIAS DE UM BRASIL QUE NÃO APRENDE



O Césio 137 causou um problema gravíssimo, tanto de infra-estrutura quanto de saúde pública, mas há poucos dias, outro aparelho de raio-x foi encontrado em um ferro-velho. A mesma prática irresponsável, a mesma ausência de fiscalização, a mesma temeridade e provavelmente, a mesma ignorância de não atentar que um aparelho dessa natureza não pode ser descartado de modo tão simples.

É praticamente anual uma temporada de chuvas que cause desabamentos e mortes na cidade do Rio de Janeiro. Eu lembro bem de um carnaval 20 anos atrás, em que o Joaozinho Trinta chegou até a fazer uma alegoria que pedia chuva para um orixá que só atendia os pedidos em contrário. O fato é que, maiores ou menores, praticamente todos os anos o Rio de Janeiro experimenta tragédias nas encostas e nas suas muitas favelas. E nem por isso se faz absolutamente nada para corrigir o problema e conter o adensamento urbano irregular e desenfreado. Décadas perdidas sem nenhum programa eficiente de habitação popular e urbanização, coisas que o prefeito Negrão de Lima já defendia na década de 60. Em contrário, a favela virou até atração, com direito a trégua dos traficantes quando aparecem ônibus de turismo.

Na tragédia da Serra Fluminense em 2011, também. Naquele conjunto perverso de condições climáticas desfavoráveis e ocupação urbana desordenada e irresponsável morreram quase mil pessoas e 30 mil ficaram desabrigadas, sendo que ainda há gente nesta situação, passados mais de 8 anos. Quase uma década sem nenhuma política de segurança e, pior, roubalheira e corrupção generalizada nas obras públicas que seguiram para reparar os danos, desvios ou simples esquecimento de donativos em depósitos.

O Morro do Bumba, episódio de ganância imobiliária misturada com ocupação urbana desordenada e irresponsável morreram 267 pessoas. Passados quase 9 anos não há um marco regulatório eficaz sobre aterros sanitários e lixões, que continuam sendo utilizados para adensamentos urbanos tão logo sejam desativados como destinos de lixo.

Na Boate Kiss morreram 242 pessoas e, passados quase 6 anos, não há nenhum condenado, não há nenhum indenizado. Daquela carnificina o que seguiu foi uma obrigatoriedade vexatória de placas verdes na frente de todos os estabelecimentos comerciais, mas de ação prática efetiva para que não se repita, quase nada. E ali manifestou-se outro defeito visceral do Brasil, o autoritarismo de agentes que deveriam proteger os cidadãos, como um promotor que processou um pai de vítima, único condenado até agora, por danos morais decorrentes de supostas ofensas em face da demora no trato da questão.

Na tragédia ambiental de Mariana, além de morrerem 19 pessoas foram milhares de animais domésticos e silvestres, além de uma perda colossal de biodiversidade com a morte de um rio, comprometendo uma bacia hidrográfica inteira. É possível que dali, tenham partido os surtos de febre amarela e chicungunha que estão levando a situação sanitária do país para algo parecido com a do início do século XX. Sem nenhuma consequência criminal, não há presos, as ações mitigadoras dos danos foram mínimas e o marco regulatório simplesmente não saiu do lugar. Os peixes voltaram ao Rio Doce, mas a pesca nele praticamente acabou em razão da contaminação, apesar da vida insistir em voltar ao rio, os bancos de areia de sedimentos tóxicos vão se transformando em ilhas. O então Departamento Nacional da Produção Mineral passou a exigir um relatório anual sobre o estado de represas de rejeitos e tudo ficou nisso mesmo, nada mais se fez, nada mais se disse até que aconteceu Brumadinho.

Em todos estes casos há componentes comuns: 

O problema aparece e não é atacado. Nada se resolve, no máximo se discutem leis poéticas e idealizadas que não são cumpridas porque exigem uma burocracia tão grande que o Estado não consegue operá-las, como, aliás, é incapaz de operar até a legislação que já existe, cujo rigor é imenso, mas apenas para acumular papéis.

Ausência completa de fiscalização e atuação pró-ativa do Estado. A legislação existe, existem diversos órgãos capazes de fazer verificações, mas na prática, alega-se falta de competência, de pessoal e de condições materiais. E o Estado continua existindo apenas como mantenedor de si mesmo, sem que as 3 esferas se conversem, como se municípios e estados não estivessem inseridos em uma federação.

Pior é o festival de politicagem. Deputados e senadores criam CPI(s) e fazem discursos inflamados contra o governo de plantão, exigem providências e dizem que vão instituir o rigor da Lei. Tudo jogado ao vento, esquecido tão logo a mídia passa para outro item da pauta macabra do dia a dia nacional. 

Há quem diga que o Brasil sofre um castigo de Deus, mas se olharmos os muitos episódios agudos e os milhares de episódios diários que são representados por quase 120 mil mortes violentas por ano, que incluem homicídios, acidentes de trânsito, acidentes de trabalho e doenças decorrentes de atividades, a única constatação objetiva é de que somos irresponsáveis, não aprendemos com nossos erros, continuamos achando que leis poéticas resolvem problemas que precisam de ações práticas.

Aliás, o fetiche brasileiro por leis é algo sintomático de nossa sociedade. Para tudo há lei, para tudo há regulamento, mas nada é solucionado porque na mesma proporção em que se legisla, se abrem brechas para a proteção processual dos desonestos e dos malandros. Quando constatamos que ladrões contumazes de dinheiro público apostam sua liberdade na discussão de prisão somente após o trânsito em julgado, quando olhamos os números que demonstram que 90% das multas ambientais simplesmente não são pagas, quando indignados ouvimos falar da troca de punições por termos de ajustamentos de conduta, tudo isso nos remete a leis que não protegem a sociedade nem às coisas que ela deve prezar, mas somente às elites políticas, econômicas e intelectuais, todas elas sempre agraciadas com algum tipo de benesse que é negado para a maior parte da população.

Quando generalizo assim, é óbvio que a culpa recai sobre a classe política, afinal, é dela que se espera que se tomem as iniciativas mais importantes para enfrentar problemas. Mas não é um problema apenas da classe política, é um problema nosso, como país incapaz de cobrar de seus governantes uma atuação mínima que aprenda com os erros no pranto das tragédias, para que elas não se repitam.

Enquanto nós, brasileiros, não aprendermos que uma única morte violenta, qualquer que seja o motivo, é vergonhosa e aviltante à nossa condição de cidadãos, nunca sairemos deste circulo vicioso de tragédia-indignação-falatório-nova tragédia. Enquanto não colocarmos a Lei para punir os criminosos ao invés de dar-lhes razões de defesa e obtenção de prazos processuais protelatórios continuaremos a ser a pátria das tragédias, das mortes estúpidas, da vida que não vale nada se for de um cidadão comum que não tenha relações privilegiadas com o Estado.



CORITIBA: O MEDO DO FUTURO.

No erro de uma diretoria interina, que acionou a justiça comum em 1989 para não jogar uma partida marcada de má-fé pela CBF para prejudicar ...