Introdução:
Na minha família, a história é de que meu avô encontrou o nome de meu pai em um resto de jornal no chão, lá em Jaraguá do Sul/SC, terra de colonos alemães, na década de 30.
Sim, meu pai se chama Rupert Mayer, um homônimo do herói que quero retratar neste texto singelo. Não se sabe, ao certo, se naquele jornal meu avô encontrou o nome do nosso herói ou apenas um “Rupert” remetendo ao duque da Bavária, príncipe do Reno, que viveu entre 1619 e 1682 na terra natal de nossos antepassados alemães. De qualquer modo, minha família não necessariamente veio da Alemanha como “Mayer”, ela pode ser “Mayr” ou mesmo “Meyer”, já que se sabe que meu avô tinha medo do nazismo e então batizou os filhos com um nome que não remetesse às famílias judias que na época já eram torturadas pelo regime criminoso liderado por Hitler.
Já faz certo tempo que penso em escrever sobre esta figura histórica. Foi quando um primo de meu pai, voltando de viagem à Alemanha, disse que, de repente, em Munique, se viu na “Rupert Mayer strasse” em frente à uma estátua do padre e nos contou em tom de brincadeira que nem lá, em outro continente, conseguia se ver livre do “alemão”, seu primo chegado numa cerveja e numa boa festa.
Enfim, faço esta introdução apenas para explicar que não tenho parentesco com o capelão, herói, beato e provavelmente santo, no futuro. Mas não deixa de ser uma homenagem ao meu pai e à minha família, afinal, ostentamos o nome Mayer de um herói, um homem que salvou vidas, que deu apoio espiritual e pregou sempre a palavra de Deus, inclusive para inúmeros não-católicos com quem serviu no campo de batalha, e até para judeus, muitos dos quais ajudou a salvar do horror nazista.
Nascimento, família e formação:
Nascido em 23 de janeiro de 1876 em Stuttgart, Alemanha, filho de comerciantes alemães, o segundo de dois meninos mais 4 meninas. Era uma família capaz de dar aos filhos a melhor educação e as melhores oportunidades, na infância estudaram música e formaram uma pequena orquestra caseira onde ele respondeu pelo primeiro violino, o que por si só já revela traços de sua personalidade.
Ao ser enviado pelo pai para estudar em Ravensburg, onde completaria seus estudos colegiais, encontrou antigos alunos do colégio jesuíta Stella Maris de Feldkirch, na Áustria, que por sua vez fizeram grandes elogios aos seus mestres. Instado a informar-se, Rupert fez um retiro, após o qual decidiu aderir à Companhia de Jesus. A família se opôs mas, não conseguindo demovê-lo da idéia, o convenceu a ordenar-se primeiro e, somente depois, em descobrindo a vocação, aderir à congregação que já sofria os efeitos do anti-clericalismo de época.
Estudou filosofia e teologia nas universidades de Friburgo, Munique e Tübigen, um ano em cada uma delas, e um quarto ano no seminário Rottenburg. Foi ordenado padre sem fazer o seminário completo em 2 de maio de 1899, designado para a paróquia de Spaichingen em Baden-Wüttemberg. Após um ano nesta paróquia, requisitou ao bispado juntar-se aos jesuítas, o que só conseguiu em um segundo pedido, pois isto implicava uma licença de suas funções sacerdotais para obter a formação congregacional.
Em 1o. de outubro de 1900 assume o noviciado, ficando até 1908 na formação congregacional, e até 1911 como missionário, tendo visitado a própria Áustria, a sua Alemanha natal, a Suíça e a Holanda, claro, lugares de idioma alemão.
O capelão dos imigrantes:
No início do século XX, a Europa era a sede dos grandes impérios coloniais.
O colonialismo assegurava matérias-primas baratas e abundantes, além de mercados cativos. As metrópoles experimentavam a industrialização forjada na necessidade de produzir modernos meios de transporte, marinhas de guerra e armamentos cada vez mais eficientes em prol da capacidade de manter o controle sobre as colônias e, consequentemente, o fluxo econômico que delas emanava, numa época conturbada, da aurora do nacionalismo e dos processos de independência de inúmeras nações colonizadas, numa velocidade nunca antes experimentada: “Observadores atentos de todo o mundo se maravilhavam com essa tempestade de mudanças, uma rajada após a outra. A tempestade era, na verdade, o próprio século 20. As mudanças tendiam a acontecer mais rapidamente em questões que envolviam a matéria – armas que aniquilavam a vida e remédios que a prolongavam, transporte, energia, modos de poupar o esforço humano.” (BLAINEY, Geoffrey, Uma Breve História do Século XX, Editora Fundamendo, 2008, p. 37).
Essa industrialização causou grande êxodo rural, que teve por efeito o afastamento dos fiéis de suas igrejas natais e o excesso de oferta de mão-de obra, que gerou baixos salários e desemprego porque o processo não era capaz de absorver toda a força de trabalho que se apresentava. Além disso, sérios problemas de urbanização causando bolsões de miséria e guetos, onde logo proliferaram os discursos salvacionistas e radicais que acabavam encontrando seguidores.
Tempos em que as discussões filosóficas chegaram às massas sob a forma de pressão política: greves por melhores salários, reivindicações por empregos e melhores condições de vida. Obviamente era muito mais fácil arregimentar adeptos nas concentrações urbanas que no campo. A Alemanha (e a Europa) convivia com conservadores, liberais, sociais-democratas, socialistas, comunistas e anarquistas. Todas as idéias tinham adeptos, todas elas tinham chances de prosperar e obter poder político.“Quando se tratava da difusão de novas ideologias, entretanto, as transformações não eram tão facilmente previsíveis. O romancista Victor Hugo, que escrevia em francês – a língua que havia expressado muitas das novas ideias -, proclamava a força inexorável da mentalidade dinâmica cuja época havia chegado. 'É possível resistir à invasão de qualquer exército, mas não é possível resistir à invasão das ideias', escreveu. De fato, algumas das novas ideias presentes nos campos da religião, da economia, da política e da filosofia avançavam e recuavam de modo desordenado. Ondas de pensamentos se chocavam contra conceitos pré-existentes no inicio do novo século. Cada vez mais, europeus ouviam as palavras de ordem dos socialistas e anarquistas, os pedidos das mulheres por direitos iguais e as queixas das minorias étnicas...” (obra citada, p. 37). E muitas destas ideias e filosofias eram anti-clericais, o que, repita-se, na Alemanha era mais acentuado contra a Igreja Católica.
Foi neste contexto que, em 8 de janeiro de 1912, Rupert Mayer assumiu a função de capelão dos imigrantes em Munique, capital da Baviera, uma das florescentes metrópoles industriais daquele país que ainda conservava um imperador poderoso e quase absolutista em uma economia em que as massas de trabalhadores clamavam por poder político e eram instados a odiar a religião e ver as igrejas como inimigas, na esteira da pregação de sociais-democratas, anarquistas, comunistas, socialistas de várias correntes e bem depois, do nazismo.
Foi designado especificamente para cuidar das massas de pessoas que chegavam do campo para uma cidade em rápida industrialização, mas onde o desemprego já era alto e onde não havia condições urbanas e de abrigo para todos que à ela acorriam.
Ao invés de esperar os fiéis na igreja que não conseguia abrigá-los, Mayer levou a palavra jesuíta aos imigrantes. Saiu pela cidade abordando andarilhos nas calçadas, visitando barracos e comunidades pobres fazendo amizades, promovendo o evangelho e prestando pequenos favores, encaminhando trabalhadores a sindicatos onde sua inscrição era obrigatória para obter empregos, e a lugares onde havia propostas de trabalho. Fez isto e arregimentou milhares de fiéis que o acompanharam na tarefa, gerando uma mobilização que melhorou em muito as condições de abrigo e emprego dos imigrantes e da cidade, com visíveis efeitos sócio-econômicos. “O problema não tinha sido resolvido, longe disso; mas pelo menos agora era bem conhecido de todos, o que tornava bem mais fácil a tarefa de encontrar uma maneira de solucioná-lo. A simples burocracia não seria suficiente; requeria-se contato pessoal e humano: os recém-chegados seriam bem acolhidos e ajudados para se matricularem em algum sindicato de trabalhadores, sem o qual permaneceriam incapazes de conseguir emprego. Deveriam ser levados a entrar em contato com a Igreja e, para tanto, era necessário também enfrentar a propaganda anti-religiosa. Os habitantes das aldeias deveriam ser esclarecidos acerca das dificuldades que os esperavam na cidade grande; se aí já existia desemprego, o problema seria mais agravado pela imigração em massa(...)”(ECHANIZ, Ignacio – Paixão e Glória – História da Companhia de Jesus em corpo e alma, volume IV, p. 181).
Já neste episódio se afirmavam características pessoais que permearam toda sua vida: vontade férrea, profunda religiosidade, a grande preocupação e dedicação pelo próximo. “A vida do P. Rupert Mayer constituiu síntese convincente do anúncio do Evangelho e e do compromisso em favor dos pobres e oprimidos”. (Carta do Superior Geral dos Jesuítas, Roma, 19/01;1987, anunciando a beatificação).
“Cada soldado deve saber que o capelão é seu melhor amigo.”
Como já dito, em 1914 a Europa vivia a efervescência cultural e política decorrente do êxodo rural e do crescimento das cidades. A Primeira Guerra Mundial foi um conflito causado inclusive por estes fatores, aliados ao nacionalismo que foi tomando tons extremos com o passar do tempo.
Quando eclodiu a grande guerra, descobriu-se que todo aquele avanço tecnológico (armamentista), e toda aquela efervescência ideológica à tornou muito mais grave e violenta, mais destrutiva e marcante do que qualquer outra na história. O historiador JOHN KEEGAN diz que “No início de julho de 1914, havia cerca de 4 milhões de europeus uniformizados; no final de agosto, havia 20 milhões, e muitos milhares já haviam sido mortos. A sociedade guerreira submersa irrompera armada na paisagem pacífica e os guerreiros travariam a guerra até que, quatro anos depois, não conseguissem mais lutar.” e complementa que muito desse estado de coisas foi decorrente dos embates filosóficos, dizendo ainda que “A ideologia da 'guerra verdadeira' foi a ideologia dos exércitos da Primeira Guerra, e o destino estarrecedor que aqueles exercitos construiram para si mesmos, graças a seu fervor para com essa ideologia...” (Uma História da Guerra, Companhia das Letras, 1995, p. 40).
Enfim, foi uma guerra cuja duração e violência estarreceram a humanidade, influenciando os rumos da história ainda por muitas décadas, visto que, do conflito, emergiu um Estado comunista, desapareceram impérios milenares e se construiu um novo mapa europeu sem a Alemanha como superpotência.
É importante que se saiba disso, porque Rupert Mayer foi um personagem daquela guerra, e deveu à isto inclusive sua própria vida durante o embate ainda mais perigoso que teve contra o nazismo 20 anos depois.
Em 1914 alistou-se voluntariamente no exército alemão para exercer a função de capelão, com a intenção de servir no campo de batalha, que, no caso, também foram as trincheiras que caracterizaram aquele conflito.
Somente em agosto de 1915 foi nomeado capelão-chefe da 8a. Divisão de Reserva da Baviera, quando deixou do trabalho em um hospital militar para o qual fora inicialmente lotado e passou à linha de frente do conflito, tendo estado em batalhas na França, na Polônia e na Romênia.
“Minha vida está nas mãos de Deus” ele respondia quando indagado sobre suas incursões ao campo de batalha. Ele entendia que deveria estar ao lado dos jovens soldados, arriscando a vida como eles. “-O que o senhor pretende fazer aqui? Não é possível ajuntar os homens para um culto religioso.” lhe disse um capitão, com a resposta: “-Não me importa. Eu simplesmente irei com você até as trincheiras para falar com os soldados”.
Novamente, a exemplo de sua atividade em Munique, com grande esforço pessoal e com a prática de atos de amizade, compaixão e heroísmo, ganhou a mais alta consideração tanto dos soldados católicos, quanto dos protestantes e judeus que lutaram pelo império.
Esteve presente nos campos em pleno bombardeio, ministrou sacramentos abaixo do zumbido de metralhadoras e fuzis em plena carga, arrastou-se para aconselhar quem lhe pedia conselhos em pleno combate, ajudou o corpo médico, arrastou feridos para detrás da linha de batalha transferindo-os para os auxilios médicos. Foi condecorado diversas vezes por bravura e indicado à mais alta condecoração das forças armadas germânicas, a Cruz de Ferro de 1a. Classe, honraria que, embora tenha sido muito deferida naquele conflito, carrega uma carga histórica e nacional de alta importância entre os alemães.
Numa época em que os jesuítas não eram bem vistos na Alemanha, foi o primeiro capelão militar e primeiro religioso a recebê-la. Mais que isso, a recomendação para a honraria partiu do general da sua divisão, que era protestante e que declarou: “Nós fomos capazes de manter uma posição muito importante, devido ao exemplo de coragem dado pelo Padre Rupert Mayer”.
A coragem cobrou seu preço na perda, em batalha, da perna esquerda, quando em 30 de novembro de 1916 foi ferido por um obus, tendo sofrido duas amputações consequentes dada a grande perda de sangue e à uma infecção. Novamente sua vontade férrea se manifestou e, 27 de outubro de 1917 voltou a celebrar uma missa, em pé, já adaptado à perna artificial.
No entre-guerras:
Na carta do superior geral dos Jesuítas quando da beatificação de Rupert Mayer, se disse que “Foi sobretudo no tempo intermédio entre as duas guerras mundiais que esta testemunha crítica e valorosa da fé apresentou uma figura profética, que sempre constituiu um repto”.
A guerra acabara, mas a efervescência política e ideológica, não.
Em contrário, agora a Alemanha se encontrava no caos político e econômico. Eram monarquistas versus republicanos, anarquistas versus nacionalistas, capitalistas versus comunistas, radicais de esquerda e de direita, partidos políticos nacionais versus regionais, golpes e contra-golpes regionais, a desencontrada República de Weimar e o peso colossal da indenização que foi imposta à Alemanha, que, em várias ocasiões gerou conflitos e agressões externas decorrentes de uma guerra que não fora causada somente por ela.
E um enorme contingente de mutilados de guerra nem sempre contritos, nem sempre conformados. E inflação, desemprego, desesperança, miséria e caos generalizado. Era assim na Bavária, era em Munique, era em toda a Alemanha que emergira da guerra como um país menor, não mais associado ao império Austro-Húngaro que fora extinto, e somente um pouco maior que a velha Prússia que era seu modelo histórico de governo forte e não necessariamente democrático representado na figura do imperador, agora tendo que aprender a ser uma democracia praticamente imposta pelo Tratado de Versalhes.
E o anti-clericalismo também, afinal, a Alemanha não deixara de ser o berço de vários movimentos socialistas, do comunismo e do anarquismo, além de ser predominantemente protestante entre quem era religioso.
Mas novamente, o diálogo, a amizade e o evangelismo de Mayer voltou a trabalhar pela paz. “O povo alemão não poderia ser salvo com o auxílio de outras nações: a melhor forma para a reconstrução nacional estava na prática da fé cristã”. (ECHANIZ, Ignacio, obra citada, p.183). Foi um tempo em que arregimentou fiéis tal qual em Munique na década anterior, trabalhando com eles na pacificação da cidade, assumindo a Congregação Mariana que já contava com 2.500 membros, logo elevados para mais de 8 mil.
E neste tempo, esteve nas assembléias partidárias, inclusive as comunistas e nazistas, nos comandos de greves, nas reuniões de revolucionários, nos julgamentos e nas diversas ocasiões em que os conflitos ideológicos roubavam a paz da Bavária e de Munique e ao mesmo tempo ameaçavam a fé e a Igreja Católica.
Foi uma época em que seu prestígio, conquistado pela bravura em combate na grande guerra, representado inclusive pela Cruz de Ferro que não raro ostentava com a batina, foi acrescido pelo trabalho apostólico que combatia radicalismo em prol do bem estar dos pobres e dos oprimidos que voltara a assistir tão logo recuperado do ferimento de guerra. Exercitou a fé e o amor em contraponto ao radicalismo latente.
Passou a ser uma referência, um indivíduo acima das opiniões e radicalismos, o “apóstolo” de Munique.
Hitler:
Presente em muitos eventos partidários na defesa da igreja e da fé, Mayer teve seu primeiro contato com Adolf Hiter em 1919, uma época em que este ainda pregava um “cristianismo positivo” e não se apresentava anti-religioso.
Nestes primeiros contatos detectou em Hitler certa histeria, amainada por alguma coerência de idéias. Mas não tardou a constatar completa incompatibilidade entre o catolicismo e o nazismo, cujo ódio sistemático e os traços de personalismo, totalitarismo, nacionalismo patriótico extremado e anti-semitismo entendia incompatíveis com o amor cristão.
Como não se furtava a levantar a voz na defesa pública da religião e seus princípios, na medida em que o nazismo cresceu também aumentou a pressão sobre ele. Diz-se hoje que, já no “putsch” de 1923, alguns nazistas pensaram em assassiná-lo, provavelmente mudando de ideia para que não se criasse uma figura martirizada pelo movimento, que, em época, não se apresentava como radicalmente anti-religioso. Com o passar do tempo e o aumento de poder do partido, o anti-clericalismo se mantinha, mas o discurso anti-clerical foi desaparecendo, de modo que, em 1935, já muito tempo depois de Mayer deixar de frequentar (por medo) as reuniões partidárias, começaram as retaliações abertas contra coletas de fundos, contra as escolas católicas que sofriam boicotes e uma campanha de desmoralização do clero, que era espionado, tendo todos seus defeitos transformados em escândalos que a imprensa oficial tratava como decadência e corrupção generalizadas.
O fato é que Rupert Mayer insurgiu-se contra tudo isto tanto em suas pregações quanto em seus atos como líder da igreja em contato com as autoridades. E o fez em em todo o país, viajou pela Alemanha fazendo até 70 pregações mensais, seis o sete delas aos domingos, tornando-se um opositor com popularidade que impedia que os órgãos de repressão (a Gestapo) o calassem.
Seu embate contra Hitler passou a ser aberto, era um padre católico que enfrentava o nazismo e especialmente sua máquina de propaganda, na época voltada contra o clero, usando de espionagem e campanhas difamatórias generalizadas.
"Um homem deve obedecer mais à Deus que aos homens”
Viajando pelo país, pregando contra o o Estado nazista que coagia a igreja foi preso inúmeras vezes, algumas delas em Landsberg, mesma prisão onde Hitler havia cumprido sua pena pela tentativa de golpe de estado. A Gestapo passou a acompanhar seus passos, uma vez que sua pregação era direta: o nazismo era contrário aos valores defendidos pela igreja, um católico não poderia ser nazista.
E mesmo perseguido, só agregou audiência. As igrejas ficaram pequenas para seus sermões que passaram a ser feitos em praça pública.
Incomodando um regime que não hesitava em simplesmente matar seus oponentes, sua popularidade o salvou da morte sumária.
Em 7 de abril de 1937, a Gestapo emitiu a ordem: “Uma vez que o Padre Rupert Mayer é nocivo ao Estado com sua pregação, ele fica proibido de pregar”, o que lhe foi comunicado pessoalmente em 28 de maio, quando negou-se a calar, seguindo-se, em 5 de junho a primeira prisão pela Gestapo, ao mesmo tempo em que esta promovia uma campanha inflamada acusando os jesuítas de todos os tipos de crimes, usada para afastar o padre do centro das atenções.
Mas de pouco adiantou. Preso, logo todas as paróquias de Munique souberam do fato e ocorreram manifestações. E à prisão acorreram outros religiosos que se negaram a delas saírem sem vê-lo pessoalmente, garantindo à população que estava vivo, o que manteve a atenção do público sobre as autoridades nazistas.
Ofereceram-lhe liberdade se deixasse de pregar, depois, o direito de pregar apenas na igreja jesuíta de São Miguel em Munique. Negou-se, “Eu devo seguir minha consciência e continuar pregando” e declarou isto por escrito, o que causou sua condenação formal, tirando-o das mãos da polícia política, sendo enviado para uma cadeia comum até o julgamento em 22 de julho, quando foi condenado, mas solto, em razão da pena de 6 meses, pelo que foi instado a ficar 7 meses sem pregar para não prejudicar a igreja e a congregação jesuíta.
Mas como isto causou uma impressão de covardia e de curvar-se à Gestapo, não cumpriu o prazo e voltou a pregar já em dezembro, o que o levou novamente à prisão em 1938, sendo libertado pouco antes do fim de sua pena, dando-lhe oportunidade de estar presente na procissão de Corpus Christi, quando foi ovacionado pela população, com a renovação da ordem da polícia política em não pregar, o que acabou sendo-lhe determinado pelo cardeal provincial.
Deixou o púlpito mas continuou seu apostolado no contato pessoal, sendo que, em 1939, foi chamado novamente a depor, pois a Gestapo queria informações sobre conspiradores contra o Estado que eram eventualmente recebidas em confissão. Recusando-se a informar nomes em respeito aos seus deveres de sacerdote, acabou novamente preso, com ordem expressa de Heinrich Himmler, de que assim ficasse até o fim da guerra, por apoiar “movimentos hostis ao Estado”.
A popularidade de Rupert Mayer o havia salvado da tortura e da morte nas mãos da Gestapo, e mesmo a prisão que seguiu-se à ordem de Himmler também foi afetada pela opinião pública. Recolhido a um campo de concentração, sua saúde apresentou rápida deterioração novamente causando preocupação no Partido Nazista, a mesma que ocorrera em 1923, pois de viesse a morrer na prisão, forte reação popular era esperada, com a possibilidade de se criar um mártir que atrapalhasse os planos de poder.
Então, uma negociação entre a igreja e o partido o enviou para o mosteiro de Ettal, onde ficaria recluso sem direito a pregar e sem funções sacerdotais, inclusive não podendo receber confissões. Fora calado pela Gestapo, “Embora esteja vivo, fui declarado morto, de uma morte muito pior que o falecimento real que enfrentei tantas vezes”, foi dado como um homem doente em tratamento.
Ficou recluso até as tropas norte-americanas chegarem ao mosteiro, quando no mesmo dia, 6 de maio de 1945, voltou a pregar na igreja da abadia.
Em 11 de maio volta à Munique e em 27 do mesmo mês, já abatido e muito doente volta a pregar na cidade que o tornou respeitado em todo país pela sua coragem, sua vontade férrea e suas convicções.
E não deixou de lutar contra o nazismo e então, também contra os efeitos da desnazificação levada a cabo pelos americanos. “A longa série de sofrimentos que Mayer sofrera sob o poder nazista habilitavam-no a falar livremente e ele aproveitou plenamente essa vantagem da autoridade moral que o passado lhe conferia. Escreveu mais de 300 cartas intercedendo por pessoas que tinham sido depostas de seus cargos por causa de suspeitas sem fundamento” (ECHANIZ, Ignacio, obra citada, p.192). Impediu que o nazismo fizesse outras novas vítimas em razão da necessidade de ser extirpado.
Em 31 de outubro de 1945, exausto da luta de décadas, cansado da guerra e de suas consequências, mas ainda ativo contra as injustiças causadas pelo nazismo e no púlpito, sofreu um derrame cerebral vindo a falecer no dia seguinte.
Beato Rupert Mayer:
Diz o blog Santos? Todos! que “Nenhum santo é santo só por aquilo que fez de forma heróica, porque nunca o teria feito se antes não existisse a consciência de um amor incondicional e gratuito, e o desejo de uma resposta coerente a este amor. Assim, a santidade é muito mais uma rendição do que uma conquista, porque é fruto, não tanto do esforço, mas da gratidão. O grande trabalho é interior, aquilo que por fora se vê é reflexo do que por dentro se experimenta e do que se quer dar testemunho”. (santostodos.blogspot.com)
A pregação de Rupert Mayer salvou vidas, alertou as pessoas a fugirem ou se prepararem para as privações. Esteve presente em todos os movimentos que buscaram impedir a ascenção de Hitler e do nazismo, chegou a ser agente do papa Pio XII nas tarefas de informação e contra-informação, na espionagem e na luta para que a guerra não ocorresse e depois, que acabasse. Salvou católicos, protestantes, judeus e ateus do horror, suas palavras impediram males muito maiores, foi um pequeno agente de Deus a confrontar um demônio colossal.
As poderosas convicções do “apóstolo de Munique” levaram o papa João Paulo II a beatificá-lo em 3 de maio de 1987.
Em 19 de janeiro daquele ano, o Superior Geral da Companhia de Jesus assim declarou em carta que anunciava a beatificação: “Da profundidade da sua pessoa brotavam-lhe as convicções, que expressava, imperturbável, nas palavras e nas acções. Estava interiormente ancorado em Deus; isto levava-o a discernir os espíritos e tornava-o capaz de sair sem condições em defesa dos direitos de Deus e dos homens. A exclamação de S. Paulo: 'Ai de mim se não proclamar o Evangelho'(1 Cor 9:16) era também realidade para ele. "Não posso calar-me", era lema que inspirava o seu compromisso em favor da verdade espezinhada. As suas últimas palavras foram: 'O Senhor... O Senhor'. Morreu enquanto pregava, anunciando Aquele em tomo de quem tinha girado toda a sua vida: 'Senhor, como quiseres, quando quiseres, o que quiseres e enquanto Tu o quiseres... assim se faça"; esta a sua oração favorita. A entrega em defesa da verdade não se limitou apenas a palavras. Todo o seu falar ia acompanhado por um amor prático do próximo. A vida do P. Rupert Mayer constituiu síntese convincente do anúncio do Evangelho e do compromisso em favor dos pobres e dos oprimidos. Viveu de muitas maneiras "o amor preferencial pelos pobres". Nos pobres encontrava ele o Senhor em pessoa. Nisto é para nós modelo. E também o é noutro aspecto: na Congregação Mariana formava ele leigos convictos das suas responsabilidades, que foram os seus colaboradores, extraordinariamente activos na propaganda da fé, no compromisso em favor dos perseguidos e na ajuda aos necessitados. A atuação do P. Mayer ensina-nos, além disso, exemplarmente, o esforço constante para acomodar o nosso apostolado às circunstâncias do momento e a empreender novas iniciativas, de acordo com as exigências duma época em mudança”.
Foi feito beato pela força das suas convicções.
Sua capacidade de agregar gente à uma causa como lider religioso numa época de desemprego e privações lhe valeu a amizade de milhares de pessoas. Depois, seus atos de heroísmo no campo de batalha o agraciaram com a mais alta condecoração militar alemã, ao mesmo tem em que granjeou respeito e admiração das massas, a quem ele soube retribuir com fé inabalável, amor ao próximo e a insistência em levar a palavra de Deus a todas as pessoas, mesmo nos momentos mais difíceis de sua própria existência. Foi o agente da luz divina na escuridão assustadora de uma época, morreu praticamente ao mesmo tempo em que nazismo era banido da Alemanha, combateu o bom combate, venceu a luta ao preço da sua própria vida, mas não desistiu daquilo em que acreditava.
Conclusão:
Os textos curtos da internet nem sempre conseguem demonstrar a dimensão histórica de uma pessoa. É por isso que faço perfis e os publico aqui, tento agregar as muitas informações em um texto só, que dê uma visão geral da vida que tento retratar.
Sem pretensão de substituir o trabalho dos historiadores, cujas teses podem divergir do que escrevo ou mesmo encontrar imperfeições, quis apenar homenagear o exemplo de fé e coragem do padre cujo nome também é o do meu pai.
É certo que as minhas opiniões pessoais podem ter causado imperfeições técnicas, mas em verdade, minha intenção foi a de fazer um resumo da vida e da obra de um grande homem cujo sobrenome por acaso eu carrego.
Grandes homens são o farol da humanidade, os seus exemplos são a luz que Deus nos envia como guia. No caso de Rupert Mayer, além do exemplo, me impressiona a força da sua palavra, a capacidade que ele teve em pregar.
Numa internet onde textos longos são ignorados, espero que quem tenha a paciência de ler este texto até o fim entenda o verdadeiro sentido da homenagem, que é o de acreditar nas palavras e nas boas ações que elas inspiram.
Curitiba, 8 de janeiro de 2019.